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Bernadete Pacífico, o seu país não é pacífico. Dorme, mãe. Confira o artigo deste domingo da jornalista Waleska Barbosa

walaesca

Cresci ouvindo minha mãe dizer: “não adianta gritar por São Bento, depois que a cobra morde”.

Hoje, 18 de agosto de 2023, ouço muitos gritos. Gritam tantas vozes. Pelo Governo Federal. Pela polícia. Pela justiça. Pelo fim da impunidade. Pela apuração dos fatos. Pela rigidez na apuração dos fatos.

Mas não adianta. A cobra mordeu. Sendo ela, nesse caso, uma arma, uma pessoa (ou várias) responsável(eis) por um assassinato (agora sabemos que foram dois homens).

A cobra-revólver disparou quatorze vezes. No rosto de uma mulher. No rosto de uma mulher que estava dentro de casa – simbolicamente o lugar em que o patriarcado quer ver uma mulher.

A mulher que estava dentro de casa. Sentindo-se presa e vigiada. Sabendo-se ameaçada. Era Maria Bernadete Pacífico. Matriarca do quilombo Pitanga dos Palmares, na Bahia.

Tombou o filho (assassinado seis anos antes, na mesma região). Foi tombado. Tombou a amiga (também vítima de perseguição contra quem cuida da terra, sua por direito). Foi tombada. E, ela, Bernadete. Sabia. Tombaria. Em breve. Tiros para o alto nas suas redondezas. Olhares intimidadores. Um serviço de proteção que se resumia a uma ronda simbólica (segundo os jornais), sem efeitos, como vimos agora.

Quase um bater de ponto. No serviço público. Um aceno/ronda. Para dizer que a missão era cumprida. Mas esse cumprimento – o aceno/ronda – não protegia.

A mão que acena. Pode ser a mesma que se omite.

Pode ser a mesma que talvez dispare a cobra-revólver. Pode ser a mesma que, talvez, aperte outras mãos de cobra-revólver como a dizer: estamos juntos. No disparar. Doze vezes. No rosto da mulher. Dentro de casa.

A mãe. A avó. A quilombola. A líder. A figura pública. A Ialorixá. A rainha. A preta. A mulher preta.

Foi dentro de casa que, quatorze tiros depois, lhes desfiguraram a face, perfuraram o tórax.
Execução.

E assim, morta, com atrasados e inúteis gritos. Tantos. Pelo Governo Federal. Pela polícia. Pela justiça. Pelo fim da impunidade. Pela apuração dos fatos. Pela rigidez na apuração dos fatos. Conhecemos mais uma mulher. Após sua morte.

Não podemos dizer: prazer. Nem lhe beijar o rosto. Não há rosto.

Bernadete, mulher de luta. De sobrenome Pacífico.

Não é pacífico o seu país.

Não é pacífica a fome por ouro, madeira, terra. A ambição dos poderosos. As alianças firmadas que fazem acontecer, nas entranhas dele, uma guerrilha sempre presente. Que ameaçam populações originárias. Que assassinam mulheres negras. Quilombolas. Politizadas. Lutadoras. Desbravadoras. Corajosas.

Margeando as entranhas, uma estrutura igualmente perversa. Que deixa a cobra-revólver morder.

Que certifica o quilombo, mas não finaliza a titulação. Que escuta o testemunho de medo da morte, mas não o apazigua. Que permite um programa de proteção que não protege. Que diz cobrar elucidação na morte da mãe. Mas não foi capaz de evitá-la. Nem elucidou a morte do seu filho, anos antes. Que diz não permitir violência. Apenas depois que ela mostra sua face mais definitiva.

Brasília fez tantas promessas na Marcha das Margaridas. Brasília viu milhares de mulheres pedirem por si. E pelas outras. Brasília emoldurou com flores o dia depois, quinta-feira, 17 de agosto. Nele, tombaria uma margarida. Das nossas mais velhas.

Pacífico é como sonhamos chamar o seu país, mãe.

Bradamos por sua presença. Mas sabemos que ela, a sua presença, é força invisível agora. A mover, com atraso e luta (não mais a sua), com raiva, sim, o que pode ser movido pela dor da sua ausência.
Dizemos que está presente. Perdão por isso, mãe.
A senhora não está. Não está em casa, descansando. Não está na religiosidade de sua crença. Não está discursando. Não está viajando. Não está militando. Não está dando colo. Não está ao lado dos netos. Não está cultivando ancestralidades. Não está se embelezando para uma sessão de fotos. Não está sofrendo pelo filho morto.

A senhora não está viva, mãe.

Ela não está viva, filhos.

A bênção.

É pacífico, Bernadete. É pacífico.

O seu país.

A senhora anoiteceu recostada à família. Acordou velada pelos órfãos.

Dorme.

É pacífico.

*Waleska Barbosa, jornalista e escritora