A professora Joana Angélica Guimarães da Luz, 63 anos, é tomada por um sentimento dúbio quando perguntada sobre o fato de ser a primeira mulher negra eleita reitora de uma universidade federal no Brasil. Ao mesmo tempo em que se vê como estímulo para outras pessoas, ela sente “tristeza” por saber que uma trajetória de vida como a sua ainda é rara no país.
Joana está à frente da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) desde 2018, tendo participado da construção do projeto político-pedagógico da instituição, focado na inclusão e na diversidade. “Trabalhamos para que um dia seja normal uma mulher negra reitora no Brasil”, disse a educadora, em entrevista ao Correio.
Filha de trabalhadores rurais apaixonados pela leitura, Joana nasceu em Itajuípe, na zona cacaueira do estado da Bahia. Graduada em geologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS), ela tem mestrado em geoquímica pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), doutorado em engenharia ambiental pela Cornell University e pós-doutorado na Brown University — as duas últimas nos Estados Unidos.
Disposta a utilizar essa bagagem na construção de uma sociedade mais justa e plural, a educadora lamenta que o racismo ainda esteja tão entranhado entre os brasileiros. “Outro dia, em uma live, uma pessoa meio que tomou um susto e disse: ‘Eu não sabia que você era negra, olha que coisa!'”.
A seguir, os principais trechos da entrevista:
Qual é a importância que seus pais, trabalhadores rurais, tiveram para sua formação?
Somos uma família originária da região do sul da Bahia, da região cacaueira. Tanto meu pai quanto minha mãe são filhos de trabalhadores rurais. Meu pai começou a vida como trabalhador rural, tanto que eu vivi até os 5 anos em fazenda onde meu pai trabalhava. Quando eu tinha 5 anos, nos mudamos para Itabuna, porque minha mãe tinha muito essa coisa do estudo, ela teve uma grande frustração de não ter estudado. Ela sabia ler e escrever, mas muito pouco estudou.
E ela tinha um grande desejo de conhecimento, lia muito. Quando eu tinha 15 anos, nos mudamos para Salvador, onde meu pai tinha conseguido um emprego. Meus pais fizeram um sacrifício enorme para que a gente tivesse uma qualificação. Isso foi muito importante para nós, para mim e meus irmãos (cinco). Todos nós estudamos e conseguimos nos formar, fizemos curso superior.
A senhora começou a estudar filosofia, depois trocou para geologia. Fez mestrado, doutorado e pós-doutorado, os dois últimos nos Estados Unidos. Como foi essa reviravolta?
Eu me casei muito cedo, quando ainda estava na faculdade. Saí de Salvador e fui morar no Rio Grande do Sul. Meu marido era de lá. Ele foi fazer mestrado em Porto Alegre, e eu fui junto. Acabei fazendo um novo vestibular em Porto Alegre e cursei geologia. Retornamos para Salvador e começamos a investir na carreira acadêmica. Comecei o mestrado e, logo depois, meu marido foi fazer doutorado fora, com uma bolsa do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico). Eu fui junto e, estando nos Estados Unidos, disse: ‘Não vou perder essa oportunidade de estar aqui; vou fazer meu doutorado também’.
Mas eu não tinha bolsa, então, era bem difícil, porque, nas universidades americanas, você tem de pagar anuidade, e não é barato. Acabei conseguindo uma bolsa. Fui batendo de porta em porta dos professores da área do meu interesse e consegui um que me ajudou. Eu trabalhava com ele, o substituindo em aulas, fazendo atendimento aos estudantes dele. Era auxiliar de ensino dele. Com esse trabalho, tive a garantia da bolsa e da anuidade. E esse professor foi meu orientador no doutorado.
A senhora participou da construção do projeto político-pedagógico da UFSB, que foi idealizada para ser uma universidade de inclusão. Qual é o resultado dessa concepção?
Como é uma universidade nova, a gente já traz na sua origem a discussão das cotas, a inclusão e a diversidade, necessárias para as universidades. Eu sempre coloco isso: as universidades sempre foram muito elitistas, muito voltadas para a classe média, e muitas pessoas não tiveram acesso e nunca se imaginaram em uma universidade. Quando nós iniciamos o projeto da universidade, já estava na origem que trouxesse essa marca, com um percentual de cotas.
Instituímos, no início, 55%; criamos, também, colégios que são chamados de colégios universitários, que ficam no entorno dos nossos três campis, e eles servem como porta de entrada para esses estudantes. Depois disso, instituímos a cota de 75% para egressos de escolas públicas. Aí, dentro desse percentual, tem os recortes raciais, recortes diversos que estão na lei de cotas. São quilombolas, pessoas trans, egressas do sistema prisional, em privação de liberdade e, também, indígenas aldeados, enfim, várias modalidades, incluindo pessoas com deficiência.
Qual é a importância da diversidade em uma universidade?
Coincidência. Eu estava em uma mesa, exatamente agora, e o tema da mesa era Universidade e diversidade. Tem duas coisas: nós gostamos de estar na nossa zona de conforto, de estar com os nossos, na nossa bolha, com pessoas que falam as mesmas coisas, pensam da mesma forma, têm os mesmos valores, enfim, isso é confortável, porque não tem embates, não tem tensões. E é muito difícil lidar com o diferente, porque isso traz aquela necessidade de contraposição.
Acho que a universidade cumpre um papel muito importante nesse aspecto, porque faz parte do cotidiano da universidade a diversidade, porque é ali onde você faz as discussões, que você tem conhecimentos diversos. Isso é importante para alavancar, inclusive, a própria evolução do conhecimento. Sem isso, você meio que estagna: ‘Tudo está bem. Se eu tenho razão em tudo, por que eu preciso mudar? Eu não preciso mudar’. No momento em que a gente se vê frente a frente com o diverso, com o diferente, pensa na possibilidade de outras formas de vida, outras relações, inclusive.
Paulo Freire é um dos intelectuais que inspiraram o processo político-pedagógico da UFSB. Como avalia os ataques que membros do atual governo proferem contra o educador?
Paulo Freire é um grande nome em nível mundial, é respeitado no mundo inteiro. Acho que esses ataques partem de pessoas que não conseguem compreender sua obra, por um lado, e, por outro lado, a concepção de vida. A concepção de sociedade dessas pessoas é de manutenção da forma como a gente vive hoje, ou seja, a de pessoas que valem mais e pessoas que valem menos. Quem faz esses ataques são pessoas que concebem a sociedade como estrato.
Há os miseráveis, que estão ali para servir ao estrato superior e, assim, sucessivamente. Há as camadas que existem para servir e, para isso, elas não precisam de escola, de educação de qualidade, de condições dignas de sobrevivência. Então, essa concepção de mundo, de ser humano que vale mais ou menos, é uma concepção que boa parte das pessoas que atacam o Paulo Freire tem.
A cada ano, tem ficado mais flagrante a interferência política do governo federal nas provas do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio). Qual é sua opinião sobre isso?
Eu acho até difícil falar sobre isso, porque, obviamente, eu sou totalmente contrária a esse tipo de interferência. É aquilo que a gente estava falando sobre a diversidade: ‘Eu acredito que a minha verdade é a única verdade possível, a única verdade que eu admito que exista. Não existe outra verdade, outras formas de ver o mundo’. Então, essa é a perspectiva, de que a gente tem de ser meio que pasteurizado com o pensamento predominante. Aí, com isso, você acaba criando situações de controle, controle de tudo, inclusive de uma prova de conhecimento, para que as pessoas não pensem.
O racismo segue fazendo de jovens negros e mulheres negras as principais vítimas de homicídio e de outras formas de violência no Brasil. O que é preciso fazer para vencer o preconceito?
Essa pergunta dá uma tese de doutorado. Primeira coisa, são os próprios negros, é o empoderamento, de se colocar na sociedade. Você vê pessoas negras ocupando certos espaços na sociedade, coisa que ainda é muito rara, mas que já começa a aparecer, aqui e ali, timidamente. Eu estava fazendo as contas: nós temos 149 instituições de ensino superior públicas no Brasil, considerando as universidades federais, os institutos federais e as universidades estaduais. São 149, mas você deve ter aí, no máximo, uns 10 reitores negros.
Isso mostra, claramente, que essa ocupação de espaços ainda é muito limitada para os negros, exatamente porque os negros foram colocados nesse espaço, nesse histórico da escravidão. E a falta de oportunidade de políticas de inclusão dessas pessoas na vida, na sociedade, isso gera toda a pressão que está no imaginário coletivo, de que os negros são pessoas inferiores, que têm menos capacidade. Isso vem lá da escravidão, que os negros eram tratados não como gente. Isso permanece. Nós vamos conviver com o racismo ainda por muito tempo.
O que significa para a senhora ser a primeira mulher negra eleita reitora em uma universidade federal do país?
Já me fizeram muitas vezes essa pergunta, e eu sempre digo que é um misto de responsabilidade, porque a representatividade tem um efeito, muitas vezes, sobre crianças, sobre outras pessoas negras. É aquilo em que você se vê. Por que as pessoas da periferia não defendem a universidade? Porque elas não enxergam aquilo como algo que é possível a elas, que é delas. A representatividade é importante porque, quando você vê uma pessoa negra em uma determinada posição de destaque ou de poder, você olha e diz: ‘É possível’. Agora, por outro lado, também, tem aquela coisa da tristeza de ver que isso é notícia por não ser algo corriqueiro.
Como as pessoas não estão habituadas a ver, então vira notícia, vira coisa de interesse. Eu gostaria, imensamente, que uma mulher negra reitora fosse algo comum no Brasil, que a gente tivesse várias, mas não é. Pensar que nós estamos aqui, em pleno 2021, discutindo o fato de uma mulher negra conseguir chegar a reitora de uma universidade. E outra questão, que eu acho muito importante também, quando as pessoas falam comigo: ‘Você se esforçou, você foi pobre e conseguiu, foi estudar’. Eu digo: ‘Isso não é só mérito, definitivamente não é só mérito’.
Porque houve muitos fatos que aconteceram na minha vida que, certamente, para muitos colegas de infância que eram pobres como eu, não aconteceram. Não é que eu seja mais inteligente do que eles, mas é porque eu tive oportunidades. Não é meritocracia, absolutamente, não é meritocracia. É questão de oportunidade. Isso acontece com uma em cada 100 mil pessoas.
Em que ocasiões a senhora se sente alvo do racismo?
Tem várias situações. Mas, para ser mais genérica, quando eu estou em um lugar, e ninguém sabe quem sou eu, sinto um tratamento diferente de quando eu estou com a minha credencial, meu cartão de identificação que diz: ‘Joana reitora de universidade’.
Aí, é outro tratamento, porque você precisa dessa credencial para que as pessoas te enxerguem como alguém. Nessa mesma ótica, pessoas dizem: ‘Viu como ela conseguiu sair da miséria e chegar aqui? Tá vendo como é fácil, tá vendo como é possível?’ E aí, quando eu chego, as pessoas ficam: ‘Olha, uma pessoa negra que conseguiu subir na vida’.
Você percebe isso. Quando eu estou em um lugar em que sou uma ilustre desconhecida, que não conhece ninguém, e ninguém me conhece, quando eu entro em uma loja mais requintada, você percebe a diferença de tratamento, porque ali você é uma pessoa que não tem o currículo por trás. As pessoas pensam: ‘Será que essa pretinha tem dinheiro para comprar alguma coisa?’. Você percebe isso nas entrelinhas.
Esse é o tipo de racismo mais comum, que é o que está nas entrelinhas, porque o explícito é o explícito, a gente sabe, enfim. O racismo está no imaginário coletivo. Esses dias, eu estava em uma live, e entrou uma pessoa. Ela meio que tomou um susto: ‘Eu não sabia que você era negra, olha que coisa!’. E a pessoa achou que estava me elogiando.
*Com INFORMAÇÕES DO PORTAL CORREIO BRAZILIENSE
*FOTOGRTAFIA: MINERVINO JÚNIOR