Um mistério que atravessa décadas e desafia os limites da ciência está prestes a ganhar novos capítulos. O Núcleo de Pesquisa em Espiritualidade e Saúde (Nupes), da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), deve concluir até o fim deste ano um estudo inédito sobre Floripes Dornelas de Jesus, conhecida como Lola, a religiosa mineira que, segundo relatos, viveu mais de 60 anos sem se alimentar ou ingerir líquidos — sobrevivendo apenas com uma hóstia diária.

O foco da pesquisa é a inédia, estado de abstinência total ou parcial de alimentos por longos períodos — um fenômeno raro e ainda sem explicação científica comprovada.
Segundo o médico psiquiatra Alexander Moreira-Almeida, coordenador do estudo, a equipe busca reunir o máximo de evidências possíveis sobre a vida de Lola. “Estamos tentando localizar pessoas que conviveram de forma próxima e regular com ela — médicos, padres, vizinhos e familiares — para entender melhor o seu modo de vida e verificar até que ponto era realmente possível manter-se sem alimentação, sono ou excreção”, explica.
Entre os colaboradores do estudo está o geriatra Cláudio Bomtempo, professor da Faculdade de Medicina de Barbacena e médico que acompanhou Lola nos últimos anos de vida. Bomtempo, inclusive, publicou um livro sobre a religiosa. Também participam da pesquisa o gastroenterologista Julio Chebli e o estudante de medicina Caio Almeida.
Uma história que intriga a fé e a ciência
Nascida em Mercês (MG), em 27 de junho de 1911, Lola sofreu um grave acidente ao cair de um pé de jabuticaba, lesionando a coluna e ficando imobilizada. Viveu o resto da vida no sítio da família, em Rio Pomba, cercada por poucos visitantes. Com o tempo, passou a afirmar que se alimentava apenas de uma hóstia consagrada por dia — algo que, segundo os relatos, manteve por mais de seis décadas.
O caso desperta fascínio e questionamentos há anos. “O grande desafio científico é que esses relatos entram em choque com tudo o que sabemos sobre o funcionamento do corpo humano. Precisamos de energia, proteínas, vitaminas e eletrólitos para sobreviver. A ideia de alguém viver tanto tempo sem esses elementos básicos parece impossível”, observa Moreira-Almeida.
O psiquiatra ressalta que o objetivo da pesquisa não é especular sobre milagres, mas avaliar se há evidências médicas e documentais sólidas que sustentem o fenômeno. “Nosso papel é investigar de forma independente, rigorosa e aberta. Não estamos nem para confirmar, nem para negar — e sim compreender o que de fato ocorreu.”
Investigação multidisciplinar
Além dos depoimentos de testemunhas, o Nupes analisa documentos médicos, relatórios, reportagens, dissertações, teses e artigos científicos já produzidos sobre Lola. Outros estudos da UFJF, especialmente na área de humanidades, já haviam abordado o impacto espiritual e religioso que ela causou nas comunidades de fé.
“Nosso enfoque atual é mais fisiológico — entender a inédia e seus possíveis aspectos médicos —, mas também estudamos como as experiências espirituais dela influenciaram a vida das pessoas ao redor”, explica o pesquisador.
De fiel devota a possível santa
Mesmo acamada, Lola se tornou referência de fé para milhares de fiéis. Seu sítio transformou-se em ponto de peregrinação, e inúmeros relatos de curas e graças são atribuídos à sua intercessão.
Em 2005, o Vaticano reconheceu oficialmente sua devoção, concedendo-lhe o título de “Serva de Deus” — o primeiro passo rumo à canonização. Neste ano, o arcebispo de Mariana, Dom Airton José dos Santos, nomeou o padre Rodney Francisco Reis da Silva como postulador do processo de beatificação, que agora entra em nova fase com a instauração de um Tribunal Eclesiástico Diocesano.

Apesar do avanço do processo religioso, Moreira-Almeida reforça que a pesquisa da UFJF mantém total independência. “A Igreja tem seus próprios critérios e procedimentos. Nosso papel é oferecer conhecimento científico que possa, eventualmente, contribuir para compreender melhor esse fenômeno extraordinário.”